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Domingo, 27 de Abril de 2025

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QUEM MATOU ANA JULIA NUMA LINDA TARDE DE SETEMBRO?

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QUEM MATOU ANA JULIA NUMA LINDA TARDE DE SETEMBRO?

 

 

 

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Era uma linda tarde de setembro quando a princesinha Ana Júlia saiu de sua casinha, um barraco na maior favela de Santana (AP), a Baixada do Ambrósio, localizada na área portuária, para comprar uma fatia de bolo na padaria.

Na sua ingenuidade infantil, comia aos pouquinhos a guloseima como se fosse um manjar dos Deuses caminhando nas passarelas de madeira podre, as únicas obras públicas que nossos governantes relegam àquela população miserável!

Aí, que delícia! Ana Júlia cuidava para não cair nenhum pedacinho, pois afinal não é todo dia que uma criança pobre da Baixada do Ambrósio pode comprar um bolinho numa linda tarde de setembro.

Mal sabia Ana Júlia, que ali, em plena luz do dia, pertinho dos sinos da Igreja dos Navegantes, haveria mais um dos tantos conflitos de facções.

Flávio Teodósio e Godofredo (alcunha “Seco”), recém imputáveis de 18 anos pertencentes à facção FTA (Família Terror Amapá), efetuaram disparos de arma contra o rival Willian (de epíteto “Vesgueta”), este na flor da idade de seus de 15 anos e já membro da gangue rival APS (Amigos Para Sempre – APS). O motivo foi dos mais torpes possíveis: um acerto de contas entre gangues.

Pouco importava para aqueles delinquentes se naquele momento na linha de tiro caminhava Ana Julia na maior felicidade com seu pedacinho de bolo. Afinal, não podiam perder a oportunidade de matar seu inimigo que estava ali “dando sopa” na claridade solar da Baixada do Ambrósio.

Mais uma “bala perdida”, na verdade uma “bala achada” na cabeça de mais uma pobre criança inocente, que tombou ali mesmo, desprotegida pelas autoridades e pela sociedade nas passarelas da Baixada do Ambrósio... numa linda tarde de setembro.

Nossas leis (ECA, Lei 8.069/1990 e art. 227 da CF/88) estabelecem a proteção integral às crianças e aos adolescentes brasileiros.

Mas por que tantos meninos de rua? Por que tantas meninas exploradas sexualmente? Por que tantos meninos carregam uma arma na mão ao invés de um livro ou uma caneta?

Por que, meu Deus? Por quê?

O aparelho repressor caríssimo do Estado (policiais, delegado, promotor e juiz) rapidamente chegou à autoria do hediondo crime e prenderam em flagrante.

Mas quem matou Ana Júlia, a rigor? Será que foi somente um dos delinquentes da gangue Família Terror do Amapá que puxou o gatilho?

No meu ver não foram só eles. Também tem o dedo do Estado naquele gatilho.

A sociedade inseriu na Constituição de 1988 importantes diretrizes (art. 227) prescrevendo que é dever absolutamente prioritário da família, da sociedade e do Estado assegurar ao menor o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Mas a violência no meio social, longe de acabar, vem apresentando índices alarmantes. A violência, como se sabe, manifesta-se tanto pela ação como pela omissão.

Há violência quando o nascituro morre no ventre da mãe por desídia médica, quando a criança morre por letal ignorância dos próprios pais e por falta de médico ou remédio para tratar de uma reles desidratação.

Há violência quando nossos jovens são vítimas entre si por conta de suas vidas desregradas decorrentes da omissão dos pais e das políticas públicas estatais. E a sociedade civil organizada assiste a tudo impassível. Poucos - raríssimas exceções - fazem alguma coisa.

Pode parecer que os pontos acima enfocados são elementos hipotéticos para uma tese de doutorado, mas infelizmente trata-se da realidade dura e crua do nosso cotidiano quando abrimos as páginas sangrentas dos nossos jornais e vemos as imagens das nossas crianças inertes sobre uma poça de sangue, com uma inútil tarjeta preta para esconder os horrores vergonhosos da nossa sociedade.

O Brasil figura como um dos cinco países do mundo com maiores índices de homicídios de jovens entre 15 e 24 anos. Segundo a Unesco, os números de mortes nessa faixa é de 54 em cada grupo de 100 mil habitantes e as medidas de internação superam 12.000 jovens privados de liberdade em unidades superlotadas, onde vigora ociosidade, violência, maus tratos e tortura. São verdadeiros presídios e não unidades educacionais.

Há solução? Sim, há.

Observem como é linda nossa Constituição e como são belas nossas leis, não é mesmo? Até parece que estamos na Suíça! Mas de que adiantam leis excelentes pródigas em direitos se nada é cumprido?

O fenômeno da criminalidade está intimamente ligado à falta de atendimento das necessidades básicas do jovem que, por sua vez, representa um processo global de marginalização social, fator esse catalisado pela pobreza e falta de oportunidades de trabalho e assistência.

Para entender bem onde está o dedo do Estado no gatilho daquele revólver da gangue FTA precisamos fazer uma interpretação topográfica senão geográfica da coisa. Vamos ao cenário do crime.

A parte alagada (“área de ponte”) da retroárea do Porto de Santana foi invadida por moradores sem-teto (e sem nada, para dizer a verdade) e foi batizada de “Baixada do Ambrósio” em homenagem a um antigo morador, o calafate Ambrósio Vitorino Marques Neto, falecido em 2006 aos 79 anos de idade.

É uma das maiores favelas do Amapá sobre palafitas na maltratada Santana, a segunda maior cidade do estado com 130 mil habitantes. É entrecortada por passarelas de madeira e de concreto. Tem apenas a rua Rio Jari e a rua 31 de março no seu bojo, as quais avançam poucos metros, ambas inacabadas que não levam nada a lugar nenhum, exceto à violência e à criminalidade.

Sua formação é basicamente consequência direta das instalações que se formaram em torno do porto de Santana, das grandes empresas internacionais ICOMI (Ind. e Comércio de Minérios), AMCEL (Amapá Florestal e Celulose S.A.) e BRUMASA (Indústria de Compensados S/A).

 A “comunidade” (tá na moda esse eufemismo, como se isso mudasse o “status quo”) é recorrentemente apresentada em manchetes policiais associada à grandes operações de apreensão de drogas, ocorrências de homicídios ou pela prática de atos criminosos em geral, reforçando, destarte, o estigma de violência numa associação automática entre pobreza e criminalidade.

Segundo o Censo de 2010 (IBGE) são 953 domicílios ocupados em área de ressaca, mas levantamento recente do Executivo apontam para mais de 2.400 habitações. As casas são construídas muito próximas umas das outras, reunidas por aglomeração, entre igrejas, bancas de vendedores informais, pequenos comércios, batedeiras de açaí e locais de venda de alimentos prontos, interligadas por passarelas precárias. E muitas “bocas de fumo”!

Ali não entra viatura da polícia, não entra ambulância e Deus nos livre se houver um incêndio: queima até o último barraco porque o caminhão do bombeiro ficaria á léguas do foco.

Lá não tem posto de saúde, não tem delegacia e nem base da polícia militar. Não há postes de iluminação pública, não tem água encanada e as vias de acesso são as precárias pontes de madeira apodrecidas.

Enfim, o Estado está ausente dali, bem longe nos gabinetes confortáveis e refrigerados dos suntuosos Palácios Públicos.

Pois é: casa que não tem gato, quem manda são os ratos...

Diante desse caos social, em 2019 quando eu era Promotor do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo de Santana, determinei à minha equipe técnica liderada pelo engenheiro Décio Oliveira, a elaboração de um projeto de urbanização da Baixada do Ambrósio, tendo em vista os recursos da ordem de R$ 47 milhões obtidos com um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) com a Mineradora Anglo American, decorrente do acidente com o Porto de Embarque de Minérios que ceifou vidas e levou o setor econômico de Santana ao limbo.

O Estado há anos havia engavetado um projeto de urbanização da arquiteta Liliane Robacher, que contemplava a remoção de 170 casas do Ambrósio, certamente por falta de recursos e por falta de compromisso político e humano com aquela pobre população relegada ao descaso. Recentemente, o senador Davi Alcolumbre surfando na crista da onda da Presidência do Senado ressuscitou aquele projeto, mas até agora nem tchum!

O projeto elaborado pela Promotoria prevê a abertura de várias ruas, interligando a rua Rio Jari com a avenida Cláudio Lúcio e completando a rua 31 de Março até chegar nos limites do porto da empresa de navegação Souzamar, cuja área é usada como via pública porque os Governos nunca fizeram nada lá. Isso impede os empresários da Souzamar de fazerem investimentos gerando emprego e renda.

Basicamente, o projeto consiste na remoção indenizada de 155 imóveis por desapropriação e a possibilidade de construção de conjunto habitacional para realocação das famílias (10 blocos de aptos de 4 andares); a construção de quatro novas vias com pavimentação em bloquetes, água, drenagem, iluminação, passeio, acessibilidade e arborização viária; construção de passarelas de concreto   e a criação de equipamentos urbanos e comunitários, tais como posto policial, creche, parque linear para as crianças, centro comunitário, posto de saúde etc.

Embora com R$ 30 milhões do TAC já depositados em conta judicial da Prefeitura de Santana, o projeto não foi adiante por pura incompetência do poder executivo e pelo excesso de burocracia do Ministério Público e da Justiça Federal em aprovarem os projetos.

Aliás, é bom que se diga que não cabe ao Ministério Público fazer as vezes de executivo, imiscuindo-se em demasia na seara da conveniência e oportunidade que são requisitos intrínsecos do ato administrativo do Poder Executivo de gerir a coisa pública.

Traduzindo em miúdos, cabe ao Poder Executivo, dentro do poder que lhe foi conferido pelo voto (a chamada “longa manus” popular), dizer QUANDO e ONDE vai aplicar os recursos.

Se o Ministério Público cumprir a sua missão constitucional de fiscal da ordem pública já está de bom tamanho, ao invés de ficar “frescando” porque causa de um Ki-suco incluído nos itens de uma cesta básica cheia de “FAIJÃO” que, por isso (suspeita de licitação direcionada por erro de grafia nas 3 propostas), nunca chegou ao estômago da população faminta.

E não adianta mandar pintar os casebres (projeto executado por uma promotora visionária): só vai colorir o cenário macabro da violência e criminalidade já manchado com as cores de sangue de anjos inocentes, como Ana Júlia!

Então quem puxou o gatilho que levou o anjinho Ana Julia para comer o resto do bolinho nas passarelas floridas do céu numa linda tarde de setembro?

Não foi só a facção FTA em confronto com a gangue APS: tem o dedo das gangues omissas do Estado!

E quem são os integrantes dessas gangues estatais? Ah, é desnecessário dizer porque são velhos conhecidos de “todos e de todas”.

Essa semana (16/11/22) os assassinos de Ana Júlia foram condenados pelo Tribunal do Júri Popular de Santana: Flávio foi aquinhoado com 15 anos de reclusão e Godofredo a 21 anos. Evidentemente, não trará a vida dela de volta, mas pelo menos não grassou a impunidade.

E quanto ao julgamento dos integrantes das gangues governamentais? Ah, o veredicto das urnas de outubro pretérito absolveu a maioria pelo sufrágio universal do povo e continua tudo como dantes no quartel d’Abrantes!

Mas Ana Júlia – pobrezinha - nunca mais irá comer um pedacinho de bolo nas passarelas do descaso da Baixada do Ambrósio... numa linda tarde de setembro!

 

Comentários:
Adilson Garcia

Publicado por:

Adilson Garcia

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