PAIS ASSASSINOS
Por Adilson Garcia
A sociedade vive chocada com as tragédias nos lares, envolvendo infanticídio, tecnicamente nominado na linguagem forense de filicídio (assassinato de filhos), ao lado do fratricídio (contra irmãos) ou parricídio (ato de matar os pais).
Parece-nos surreal um pai matar um filho, mormente um infante indefeso na sua tenra idade, sem motivos, por absoluta obviedade, porque uma criança na sua inocência, por mais grave seja um ato praticado, não tem consciência da ilicitude deste ato ou de suas consequências, tendo em vista a condição inerente de um ser em formação e incompletude das faculdades mentais.
E essas tragédias não escolhem nível cultural ou social. Vimos estarrecidos um casal típico de classe média assassinar sua própria filha, atirando-o das alturas de um edifício e a perícia delatando que já dentro do veículo havia sinais de sangue. Pobrezinha da Isabela Nardone. Toda vez que minha netinha Belinha faz cócegas nas minhas barbas, me dá um calafrio de lembrar que um ser humano é capaz de tamanha barbaridade contra seu próprio sangue, na total inocência infantil.
Ficamos também estarrecidos com o caso Richthofen, no qual pai e mãe foram mortos dormindo, indefesos, a golpes de barra de ferro na cabeça, num plano macabro engendrado pela filha educada, de semblante lindo e lágrimas de crocodilo no enterro dos pais.
E por último, vimos um político de expressão de uma das maiores cidades do Brasil, médico, no ápice da pirâmide social, submeter um enteado, criança de meros 4 anos de idade, a sessões de sevícia, espancamento cruel que levou à explosão hepática e consequentemente intensa hemorragia interna, “causa mortis” revelada no laudo de necropsia.
Já dentro do elevador a caminho do hospital, a criança jazia sem vida e sem que o seu algoz, médico de formação, esboçasse qualquer ato de reanimação. A mãe, omissa, tinha conhecimento das sessões de espancamento que seu filho sofria. Ou seja, tinha consciência da psicopatia do companheiro e mesmo assim anuiu com o triste destino de fruto de seu ventre.
Nas minhas lides forenses como promotor de justiça, fiz um júri no interior do Estado do Amapá. Era um caso de infanticídio, mas como peguei o bonde andando o colega de beca que me antecedeu formulou uma acusação de infanticídio puerperal sob a égide do artigo 123 do Código Penal, que típica o crime como “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”, pena de 2 a 6 anos.
Ou seja, o colega “pegou leve”. Depois fiz uma análise, e nessa modesta análise sem muito rigor científico, conclui que o colega recém convertido para uma seita, deixou-se levar pela teologia evangélica e ficou com dó da assassina. Fique muito aborrecido com isso.
Etimologicamente, puerpério vem de “puer” (criança) e “parere” (parir). Estado puerperal é o período que vai do deslocamento e expulsão da placenta à volta do organismo materno às condições anteriores à gravidez.
O puerpério não traduz necessariamente uma perturbação psíquica, por isso o operador do direito tem que analisar se a capacidade de entendimento ou autodeterminação da parturiente foi afetada, porque é um fato biológico já definido pela ciência que a parturição desencadeia numa súbita queda nos níveis hormonais e alterações bioquímicas no sistema nervoso central levando, não raro, a matar o próprio filho.
Naquele caso, não tinha nada de estado puerperal no meu ver, mas devido ao estágio do processo, não havia mais possibilidade para a acusação de sustentar uma “mutatio libelii” ou “emendatio libelii”, porque como se sabe, o réu se defende dos fatos e não da tipificação jurídica.
Por isso, a mãe assassina “saiu no lucro”. Fiz o júri e o conselho de sentença formado por cidadãos ilibados, condenou-a por unanimidade e o juiz fez o maior esforço possível para dar a pena máxima. Literalmente forçou a barra, porque a ré era primária e de “bons antecedentes”. Por tais circunstâncias judiciais, o novato juiz, que fora meu aluno na Universidade Federal, me confessou que iria dar pena acima de 4 anos para enjaular aquela mãe na penitenciária, ainda que por pouco tempo. Você sabe como é a execução de pena no Brasil, não é? Um “mel na chupeta” para o criminoso.
Há alguns anos, essa mesma mãe “perdeu” um filho de alguns meses em situação muito estranha. Mas era voz uníssona naquela pequena comunidade da Comarca de Amapá que ela havia morto a criança na hora da amamentação, sufocando-a com o próprio peito. Diante da ausência de provas disso, a homicida saiu ilesa das barras da justiça.
Desta feita, ela deu a luz a uma bela criança, parruda, saudável. E novamente solucionou sua ira contra o pai da criança que a abandonara sem condições materiais, matando-a.
Mas levou azar porque morava vizinha de um sargento da Polícia Militar, Mont’Alverne, que com sua perspicácia, não mais via os cueiros embandeirados no varal da vizinha. E também não ouvia mais o choro da criança. Ao questionar com os vizinhos, tomou conhecimento do passado sombrio daquela mãe e a hipótese de ter matado outro filho.
Isso deixou aquele policial com a pulga atrás da orelha. Ao perguntar para a mãe o paradeiro do filho, esta informou que deu em adoção e um casal viera de Macapá buscar o bebê. Investigando na vizinhança, nenhum veículo foi visto por aquela rua morta e afastada da vila. Isso atiçou a desconfiança do experiente policial.
Ele que comandava um grupo de meninos da guarda-mirim, soube pelos guardinhas que havia um poço abandonado nas redondezas. Ao focar o fundo do poço, viu uma caixinha com algumas folhas por cima.
O sargento amarrou um dos guris numa corda e o desceu. Quando abriu a caixa, o sargento me revelou que foi a cena mais macabra da sua vida que o levou às lágrimas de tristeza e revolta. A criança fora morta por estrangulamento com a própria fralda amarrada no pescoço.
Fiz aquele júri me derramando em lágrimas, foi o júri que mais chorei na vida, porque minha mãe quando me deu a luz, doente, sozinha e abandonada, talvez em condições materiais e psicológicas piores que aquela ré, tinha todas as possibilidades de “se livrar daquele problema”. Mas não: olhou para aquele corpinho franzino, chorando e ainda ensanguentado ligado à placenta e disse:
-Esse menino vai ser um doutor!
Perdoem-nos, Henry Borel e Bernardo Boldrini, nós, a sociedade, não tivemos competência para lhes dar proteção e possibilidade de um dia ser um doutor, talvez médico como seus algozes, mas para salvar vidas.
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