COLUNA OPTIMUM
O SACI E O SAMBINHA DA FLANELA NO SAPATO
Por Adilson Garcia
Você se lembra do seu primeiro emprego?
Bem, quando menino, pobre de “marré marré marré deci”, eu tinha um amiguinho na escola, cujo apelido era João Ladrão.
João Ladrão sempre aparecia com um invejado kichute ou uma bola de futebol de capotão para a gente disputar uma pelada com a patota na hora do recreio. Peleja escondida: a professora não gostava porque retornávamos à sala igual a uns porcos, todos sujos da terra roxa que colore o norte do Paraná, naquele campinho de chão batido.
Ali eu sonhava ser um jogador famoso como o Rivelino, meu maior ídolo, chutando de trivela com a canhota canhuda e imitando seu “elástico”. Ainda bem que eu estudei.... (rss).
E João Ladrão sempre tinha um dinheirinho prá pagar uma raspadinha: o “must” da época, um tijolo de gelo de água de poço raspado coberto com xarope de groselha (meu preferido). Aquele tempo da década de 70 não existia milk shake e nem casquinha do Méqui Donald’s.
Voltávamos da escola para casa com os ventos invernais cortando a bochecha, ardendo o nariz e rachando nossos lábios. João Ladrão morava lá pelas minhas bandas do Jardim Alvorada, na sonora cidade de Maringá, cuja saga da retirante Maria do Ingá musicada pelo poeta Joubert de Carvalho lhe inspirou o nome.
Um tanto quanto desconfiado, até mesmo pela alcunha, perguntei a João Ladrão se seus pais eram ricos e lhe davam sempre o da merenda. João Ladrão me respondeu:
-Não. Eu sou órfão de mãe e meu pai é guarda noturno, ganha uma miséria. Eu trabalho.
-Como assim? Você trabalha?
-Sim. Eu vendo Sacis no portão da fábrica da Sanbra.
Inimaginável aquele garoto esquálido, entre 11 ou 12 anos de idade, trabalhando...
A Sanbra (hoje Bunge) era uma enorme fábrica de óleo, margarina e outros derivados, mais ou menos próxima ao nosso bairro. Processava soja e algodão, exalava um cheiro delicioso que assanhava as nossas lombrigas e cobria de fuligem nossos telhados. Tinha centenas de operários.
Era o ensurdecedor apito da fábrica que nos acordava 6h00 da manhã, avisava a hora do almoço, do lanche da tarde e o final da jornada, para o descanso dos operários.
Pensei lá com meus botões como que ele vendia sacis: será que ele ia no Sítio do Picapau Amarelo, capturava sacis e vendia (rsss)? João Ladrão me explicou:
Saci é um refresco que vem num saquinho com um canudinho espetudo. Eu vendo uma caixa de isopor cheia todo dia, 60 Sacis na porta da fábrica. Você não quer vender também?
Ali nascia meu primeiro emprego. De ladrão o João Ladrão não tinha nada. Era um trabalhador raiz.
Pedi autorização para minha mãe, escondido de meu pai, que não me deixava por os pés fora do quintal e me batia por nada. Já pensou? Apanhar por trabalhar?
E lá fui eu. No apito da fábrica do lanche da tarde, lá estávamos na guarita. Uns vendiam coxinhas, outros pastéis, pamonha, café etc. E João Ladrão e eu vendíamos Sacis. Era um sucesso porque aquele tempo não tinha cantina e nem refeitório nas fábricas. Os famintos operários corriam para o alambrado da entrada principal da fábrica para lanchar!
Em dinheiro de hoje eu faturava R$ 60,00 brutos por dia, com comissão de 30% dava R$ 18,00 por menos de uma hora de trabalho. Era bufunfa pra “dedéu”, cariocamente falando.
E eu voltava para casa com o dinheiro da mistura, entregava com orgulho pra Dona Neguinha, minha mãezinha querida. Nunca mais faltou leite para minha irmã magricela que corria atrás de mim com um beliscão armado quando eu a comparava com um pelego. Pobrezinha, apelidei de Peleica! (kkk).
Bem, o trabalho não era bolinho não! Os Sacis pesavam na caixa de isopor e eu era franzino. Mas trabalhador sempre ajuda trabalhador, não é mesmo?
Na rua da fabriqueta do Saci passava um ônibus (em Maringá chama-se “circular” rss) que tomava o rumo da Rodovia do Café onde estava a fábrica de óleo. Um velho motorista com cabelo e barba avermelhados (apelidamos ele de Ruço Sarará) parava para nós e nos deixava colocar as caixas térmicas cheias de refrescos Saci pela porta da frente do ônibus.
-Pode entrá, meus “fios, ocês tão trabaiando”.
O ponto de ônibus não ficava longe do acesso à fábrica, mas o bondoso Ruço parava o ônibus bem na frente da Sanbra facilitando para nós descermos que nem dois foguetes. Na volta, vínhamos a pé com os bolsinhos pesados de moedas e a caixa de isopor aliviada. Sorriso de orelha a orelha! Era uma felicidade só, apertando campaínhas, chutando latas e pedras pelo caminho!
Mas uns motoristas filhos da puta (até hoje tem muitos rss), puxa-sacos do português dono da frota, não paravam para nós. A gente encarava o trecho “de pés” apressados para não perder o “timing” das vendas e as alças da carga pesada entravam no lombo como relho trançado. Era o jeito!
Próximo do natal, eu e João Ladrão compramos um binga à gasolina para dar de presente para o nosso “chegado”, o fumante motora Sarará. Mas ele nunca mais apareceu naquela linha. Perguntamos para um motorista magricelo com cara de tísico que estava no seu lugar e sua resposta amarfanhou nossos coraçõezinhos para sempre:
-Ah, o seu Esclepíades teve um infarto dirigindo. Fumava muito. Morreu fazendo o que gostava tombado sobre a boleia. Mas ele falou de dois meninos “trabaiadores” e me pediu para ajudá-los.
-Entrem logo, piás, antes que um fiscal de linha veja!
Deus certamente reservou um lugar no camarote vip lá do céu para nosso velhinho Ruço! Que Deus o tenha! Sua atitude foi um exemplo de altruísmo que ficou carimbado no nosso caráter.
Passado um tempo depois, João ladrão apareceu todo alvissareiro na minha casa com uma caixa de engraxate, pregada com pedaços de caixa de laranja jogada no lixo. Viu? Reciclagem em plena década de 70!
-Olha, meu tio que fez. Vumbora engraxar sapatos. Dá uma grana!
Meu avô, o negão “véi Haroldo”, trabalhava em dupla com meu tio Portuga na estação ferroviária lavrando toras com seus músculos de halterofilista para embarcar nos vagões de trem. Mas nas horas de lazer era um mago no cavaquinho e pandeiro, além de exímio marceneiro. Tinha os apetrechos todos.
Fazia carrinhos de madeira para os netos com uma habilidade espantosa no serrote, arco de pua e plaina “na braba” porque não tinha energia elétrica no nosso mundinho pobre.
Lógico, pedi a ele e rapidamente fez minha caixinha de engraxate pintada de preto e branco, porque vô Haroldo era corintiano como eu. Mas há controvérsias: falavam que ele era santista! Mas duvido: gente boa que nem ele só podia ser corintiano. No rádio “caixa de abelha” dele eu só via o vô Haroldo atento (nem piscava) sintonizado nas ondas AM da Rádio Tupi ouvindo as dramáticas narrações de Fiori Giglioti dos jogos do Timão.
No sábado seguinte estreamos pelos bares do bairro. Aquele tempo ir ao boteco ou jogar uma sinuca parecia um ritual. Todo mundo na beca, calça branca, a notável camisa “Volta-ao-Mundo”, sapato Passo Doble lustrado, brilhantina no cabelo e perfume Lancaster no sovaco.
Hoje todo mundo usa tênis e por isso engraxate passe fome! É uma raça extinta! Kkkk
Mas logo no primeiro cliente, passei vergonha na estreia!
Num Mustang vermelho reluzente chegou um distinto senhor de 2 metros de altura e da largura de um guarda-roupa, a pele brilhava de tão negra e me perguntou com a voz do Cid Moreira quando está com gripe:
-Quanto é a engraxada, piá?
-Dois contos!
-Te pago cinco contos! Mas você tem que tocar um sambinha na flanela!
Pronto! Agora, danou-se! E eu lá sei tocar samba?
João Ladrão estava do meu lado engraxando outro cliente e me sussurrou ao pé do ouvido:
-Brechó, quando você for dar a polida com a flanela, estica e bate um samba!
Estiquei o pano encardido e nada de batucada...
O negão levantou-me da caixa de engraxate pelo colarinho e disse:
-Senta aí. Põe meu sapato no seu pé. Vou te ensinar. Ouça o ritmo:
-Dum, dum, urubu calango sapo! Urubu calango sapo! Dum, dum urubu calango sapo! Skindô skindô! Escuucucu duru dum dum! Escucuuu duru dum dum!
Tentei mas não saiu samba nenhum. O negão, calça branca boca-de-sino, camisa vermelha berrante, um anel dourado com um rubi do tamanho de uma bola de gude, sorriu-me mostrando seus dentes de ouro:
-Piá, antes de ser advogado, eu fui engraxate. Vai treinando, ninguém nasce sabendo. E estude, viu? Prá ser um doutor como eu e ter um carro bonito como esse aí, ó! Toma cinco contos!
Olhei o esportivo vermelho do negão e me vi pilotando-o na minha quimera, que é o resultado da imaginação que tende a não se realizar. Mas quá? Quando que um menino pobre iria ter uma máquina daquela? Só sonhando, mesmo!
Poxa! Quanto orgulho! Meu primeiro cliente foi um doutor e eu pela estampa excêntrica jurava que era um cafetão, jogador de baralho ou um bicheiro! Quanto preconceito, né?
Naquela época diploma de doutor era para poucos brancos. Imaginem os obstáculos vencidos pelo “negão”, um Luiz Gama contemporâneo, para ter seu canudo nesta sociedade brasileira criminosamente racista? Não deve ter sido fácil!
Já adulto, eu o reconheci pelo tamanho do Toni Tornado e sorriso de metal nas manchetes dos jornais, famoso numa causa polêmica na defesa de suas raízes negras.
Em tempos recentes preparei uma minuta de projeto de lei para corrigir uma distorção tributária no IPTU de Maringá e submeti o tema ao vereador “Negrão Sorriso”! Falei da minha primeira engraxada com o dr. Negão e o jovem edil negro emocionou-se em lágrimas comigo, por óbvio lembrou da sua infância maltrapilha e os obstáculos materiais e sociais inerentes à cor da sua pele.
A gente estereotipa as pessoas inconscientemente utilizando conceitos preconcebidos. Mas eu, que tinha um avô negão que me criou ninando no colo fumando cachimbo depois de banho tomado, no crepúsculo de um dia cansativo do penoso trabalho braçal na ferroviária, passei a ter dois ídolos negros.
Ah, não esqueci do Pelé no auge, mas o rei não era corintiano! Ninguém é perfeito, paciência! Eu gostava era do Rivelino (e o Maradona idem). Não se fala mais nisso! Kkkk.
Quando acabamos a jornada de engraxate naquele primeiro dia, eu e João Ladrão fizemos uma renda superior a dos Sacis. E de lambuja a caixa de engraxate era leve. Lembrei-me dos conselhos da minha mãe:
-Estuda filho, caneta é mais leve que enxada...
Treinei bastante o sambinha da flanela no sapato com meu professor João Ladrão.
-Como é que é mesmo o ritmo do dr. Negão, João Ladrão? Coçaocu balanga o saco, coçaocu balanga o saco?
-Quiá, quiá, quiá! Não, Brechó! É assim ó: dum dum, escucum durum dum dum dum, bate em cima bate em baixo, urubu calango e sapo!
Ouvindo sambas no rádio aprendi. Finalizava a engraxada com um batuque do hino do Corinthians. Os palmeirenses odiavam... (kkk).
Mas engraxate leva muita gozação também, viu? Tipo:
-Ei, você tem graxa preta? Tem? Então vai engraxar o saco do Pelé!
Ah, mas João Ladrão, mais experiente e malandro, logo me ensinou:
-Brechó, quando mandarem você engraxar o saco do Pelé, dá a seguinte resposta:
-É pra engraxar o saco do Pelé? Então me empresta a escovinha da sua mãe! E sai correndo prá não levar um cascudo (rsss).
Bom, não importa o que você faça! Relevante que seja bem feito! Eu era um bom engraxate, protegia da graxa as canelas dos clientes com papelão, dava um brilho radiante nos sapatos com direito a um concerto no fim do espetáculo.
Depois, fui protético habilidoso, agricultor incansável, despachante de trânsito, contabilista exato, bancário competente e professor estudioso e dedicado.
Após iniciar engenharia civil aos 17 anos numa Universidade Federal e abandonar o curso por causa da pobreza, abracei a carreira jurídica porque o inconsciente, aquele pedaço submerso e insondável do cérebro, ficou impressionado pelo exótico doutor Negão e antes por um jovem advogado que meu pai amparou no passado, dividindo o pouco que tinha.
Este se chamava doutor Brandão e dormia comigo no meu quartinho. Eu mal tinha 5 anos, adorava gibis sem saber ler. Brandão acordava cedo e com paciência de Jó, lia Mickey e Pato Donald para o deleite dos meus sonhos infantis.
Esse jovem advogado brilhou nos tribunais e na política. Sua performance me impressionava, era um orador nato imbatível e eu acompanhei sua trajetória com orgulho de ter compartilhado com ele meu quartinho humilde de madeira no seu miserável começo.
Tornei-me advogado como eles dois. Depois fui promotor de justiça combativo e antenado nas questões sociais. Agora aposentado, voltei à advocacia porque o sangue que corre nas minhas veias é vermelho como as cores da OAB, rubro como o carraço do dr. Negão. E o criador me deu o encargo extra de lecionar direito nas Universidades e realizar os sonhos de doutor dos “negões” e “brandões” da vida.
E o João Ladrão? Ingressou nas fileiras militares e aumentou a estatística de heróis fardados mortos pela criminalidade. Descanse em paz, meu inesquecível amiguinho, me ensinastes ser trabalhador humilde, mas não ladrão. Para conhecer o caráter da pessoa, basta analisar suas companhias. Se elas forem boas somarão coisas edificantes para a tua vida, mas quem se mistura com porco farelo come. Daí a sapiência do ditado popular “diga-me com quem andas, te direi quem tu és”.
Nunca perguntei para João Ladrão as razões desse apelido, dúvida que ficou para a posteridade. Vai ver roubava mangas da vizinha como eu! (Rss)
Obrigado João Ladrão, Ruço Sarará, dr. Negão Pavulagem, dr. Brandão, tio Osvaldo Portuga, vô Nego Haroldo e mãe Neguinha! Valeu pelos conselhos e exemplos de vida: graças a vocês o engraxate Brechó emoldurou diploma de doutor, anda de carrão vermelho importado e sua ferramenta de trabalho é leve como uma pena!
E tudo começou com o Saci e o sambinha da flanela no sapato.
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