COLUNA FÓRUM OPTIMUM
HABEAS CANIS
Vou contar a história de um “habeas canis” que libertou um vira-lata do presídio. Habeas corpus todo mundo conhece, que é ação judicial de bicho gente com o objetivo de proteger o direito de liberdade de locomoção lesado ou ameaçado por ato abusivo de autoridade.
Em latim significa “que tenhas o corpo” (no caso, livre). A expressão equivale algo como “apresentem o corpo ou a pessoa” e tem suas origens nas ordens que os reis davam aos magistrados, xerifes e senhores feudais que haviam prendido alguém.
Era ordem para que o preso fosse apresentado ao rei para que ele pudesse ouvi-lo, julgando se tal prisão fora devida ou não, ao invés de ouvir apenas a versão do autor da prisão. Era o contraditório de corpo presente.
A autora do “habeas canis” foi a então acadêmica Mary Help. Primeiramente ela quis ser psicóloga, mas depois por ironia do destino obteve o canudo de bacharel em direito. Seu sonho primitivo era libertar os indivíduos das amarras psicológicas que prendem os psicóticos dentro de si mesmos.
E a vida lhe reservou a grata missão de velar pelas liberdades individuais e coletivas, trabalhar em prol das pessoas e fazer valer o direito tão tripudiado pela nossa sociedade.
Nas fases derradeiras da graduação em direito, Mary Help estagiou na Defensoria Pública e atendia as demandas da Penitenciária para garantir os direitos dos condenados. Porque preso também tem seus direitos, como cumprir pena dentro das regras humanas e temporais, sendo garantidos seus direitos às progressões de regime, indulto, detração penal etc.
Os condenados não podem ser jogados nas masmorras e lá serem esquecidos e tratados como cachorros sarnentos.
Cachorros? Falei em cachorros? Pois bem, vamos falar do nosso habeas corpus canino... “habeas canis” (rss).
Certa feita, na hora do rango, eis que me chega a doce Mary Help em casa, toda alvissareira e me diz:
-Amor, consegui soltar meu primeiro preso! Uhuuu...
Fiquei meio puto porque eu era promotor de justiça e lá nos primórdios da carreira eu andava com a faca nos dentes querendo prender todo mundo! Eu me sentia um pouco desconfortável quando via um bandido sair de fininho pela porta da frente do presídio... (rsss).
Mas a título de incentivo, esbocei um enorme sorriso (confesso forçado, falso como nota de 3 reais... rsss) e a parabenizei, dando aquela força. E em seguida ela me disse:
-E ele está aí na garagem, vou lhe apresentar!
Confesso que meu semblante ruborizou. Pensei: Putz! Aí já é demais, trazer preso pra casa é o “ó do borogodó”...
Já ia me estressar quando Mary Help voltou da garagem trazendo no colo um cachorrinho de pelagem dourada e o focinho preto. Dava na cara que era um vira-latas, mas tinha traços ancestrais de um lobo.
Desde pequeno, ninguém ganhava dele na porrada! Quase o batizei de Mike Tyson (rss).
A aspirante a advogada contou-me que um preso havia adotado o pequeno cãozinho, nascido de uma cadela vira-latas que vivia na Penitenciária, mas foi deportada com a ninhada pelos guardas de presídio que não admitiam mascotes lá dentro.
Um preso “roubou” uma das crias para lhe fazer companhia e aplacar a triste solidão das masmorras e implorou para Mary Help:
-Doutora, pelo amor de Deus, leve meu cachorrinho! Cuide dele para mim. Eu amo meu cãozinho, divido minha comida e meu leite com ele.
Nas horas de tristeza e de solidão naquela cela, o cãozinho fazia companhia e conversava com Severino, de epíteto “Ceará Cabeça de Cuíca”. Entendia tudo. Prestava uma atenção danada levantando as orelhas e olhando o interlocutor com um sorriso na fuça balançando freneticamente o rabinho!
Nas noites frias no concreto que lhes servia de cama, eles se aqueciam reciprocamente.
-Doutora, eu sou inocente! Vamos provar isso. Aí quando eu ganhar a liberdade a senhora devolve meu cãozinho, vai ser meu vigilante no meu barraco lá na beira do Canal das Pedrinhas, de onde eu nunca devia ter saído.
Mary Help é uma protetora nata dos animais. É maior madrinha que eu conheço dos bichos. Acolhe nas ruas, cuida, gasta com veterinários, promove doações, metida em ONGS animais, enfim... Tem um coração do tamanho do mundo com os bichinhos. Deveria ter feito o curso de veterinária, isso sim!
Mas aí começa uma longa história de amor canino. Mary Help, para me “subornar psicologicamente” e evitar um não àquela adoção canina, pôs o vira-latinha no meu colo e pediu para batizá-lo. Assim que o peguei nas mãos, ele empapou meu colo com pingos de mijo.
-Tá, vai se chamar Pingo de Mijo. – Mary Help protestou:
-Errr.... tá bom, tá bom: Pingo então (rsss).
E assim Pingo foi o primeiro cachorro de estimação nosso! Era um tremendo nó cego. Tinha o espírito de vira-latas, fazia parte da sua genética.
Dávamos água mineral geladinha na sua vasilha, mas Pingo só tomava água dos vasos sanitários. Era só achar a tampa aberta e ia lá e “slaaap, slaaap, chulepe, chulepe, chulepe”! Kkk.
Servíamos ração premium que custa o “zóio da cara” misturada com carne e leite, mas o infeliz quando escapava pra rua adorava uma carniça! Rsss. Afiava os dentes e limpava os tártaros nos sapatos e chinelos que encontrava. Não tinha jeito.
Todo dia se não desse umas voltinhas pelas redondezas, Pingo gania chorando, arranhando o portão. Ele não suportava ficar preso, talvez um trauma por ter nascido na penitenciária.
Pode parecer sacanagem minha, mas Pingo era um libertário, liderava a cachorrada do bairro e dava as cartas. Era o manda-chuva da rua, era conhecido nos botecos e restaurantes da redondeza. Fazia ponto no bolicho da Dona Maroca, no sambódromo e no Estádio Zerão ao lado da nossa casa ali no bairro Marco Zero.
Pingo era de uma pelagem caramelo lustrosa que lumiava no sol setentrional do meio do mundo. Bem tratado com vitaminas, tomava banho com shampoo importado e portava uma coleira de couro legítimo cravejada de pedras e metais. Parecia o roqueiro Supla. Se fumasse o cigarrinho do capeta, falasse gíria, pintasse o pelo de louro e cantasse rock mal tocado, eu diria que um era o focinho do outro. Rss.
Apesar do visível DNA de vira-latas, via-se logo que tinha dono e por isso era respeitado no bairro. No boteco da esquina, seu Orlando logo avisava os bebuns:
-Olha, esse aí é o Pingo, o cachorro do Promotor. Diz um provérbio chinês: “antes de chutar um cachorro, pense no dono dele”! (rss).
Quando eu retornava para casa e apontava a proa do Civic verde na esquina, Pingo reconhecia e vinha feito foguete. Conhecia o ruído do motor. Dava pulos de alegria e batia o focinho no meu nariz, me lambia (éééca!), abanava o rabo, corria em rodopios insanos. Fazia a maior festa!
Lembro que estava dando aula na Universidade Federal ali perto de casa, quando uns alunos apontaram para a porta da sala. Olhei, lá estava Pingo sorridente, querendo entrar. Acho que queria ser advogado das cachorras! Rs..
Após a aula, abri a porta do carro e Pingo sentou no banco da frente. Parecia gente, curtindo o trânsito e a brisa do ar condicionado nas ventas.
Certa noite, ao retornar para casa, após a recepção canina calorosa, Pingo entrou na minha frente e rosnou desconfiado, latiu e retrocedeu. Eu insisti em entrar e Pingo abocanhou minha canela e me segurou pela barra da calça. Rosnou e latiu me apontando o perigo: era cobra que estava ali na garagem com o bote pronto.
Pelo formato triangular da cabeça e um pequeno orifício entre os olhos e as narinas, chamado de fosseta loreal ou fossas lacrimais, pude concluir que era uma cobra venenosa. Outrora aprendi que as serpentes inofensivas fogem quando ameaçadas, mas as peçonhentas não, elas se enrodilham e armam o bote.
Putz! Era uma surucucu pico-de-jaca, considerada a cobra mais venenosa da América do Sul. Pingo me salvou! Dei uma pernamancada* na cabeça dela! (*caibro é chamado de perna-manca aqui no norte). Puxa, deu vontade de arrumar uma carniça de recompensa para o Pingo. Rss.
Tempos depois Ceará Cabeça de Cuíca foi a julgamento no Tribunal do Júri. Mary Help coadjuvou o defensor público e conseguiram a absolvição por legítima defesa. Severino provou que defendeu a própria vida. Decisão unânime.
No outro dia Ceará Cabeça de Cuíca tocou a campa lá de casa:
-Doutor, vim buscar meu cachorrinho. É a única coisa que eu tenho, além da vida e da dignidade que me sobrou.
Com os olhos marejados, devolvemos Pingo ao legítimo dono. Mas Ceará morava perto, ali no Canal das Pedrinhas. Combinamos de visitar Ceará e Pingo sempre que batesse saudade.
Mas como Pingo era “rueiro” e o trânsito de caminhões no Canal das Pedrinhas é intenso, Ceará o prendeu numa corrente. Mas Pingo gania desesperadamente e esperneava até se ferir. Não houve outra alternativa senão soltar Pingo.
Usando as prerrogativas da liberdade, Pingo ia bater lá em casa, latia e arranhava o portão pedindo para entrar.
Ceará o buscava, Pingo voltava e Ceará o buscava de novo. Até que Ceará desistiu, jogando a toalha.
-É.... doutor! Pingo não nasceu para ser prisioneiro. É horrível a falta de liberdade. Eu, que injustamente fui preso, sei que é uma das maiores desgraças do mundo. Por isso, Pingo vai ser livre para viver feliz...
Mas Pingo era do mundo. Porém não esquecia do seu primeiro dono, pois ia sempre nas Pedrinhas receber os afagos de Ceará. E depois de roer um osso carnudo que o companheiro de cela lhe reservava, voltava para o conforto do seu bangalô amarelo do Jardim Marco Zero para beber água fresquinha do vaso sanitário e tomar seu posto de fiel sentinela, pronto para dar a vida por seus donos adotivos.
Pingo me faz lembrar do famoso discurso do advogado George Graham Vest, no júri do famoso caso do cão Old Brum (Velho Tambor) nos EUA, levando a plateia, os jurados e o juiz às lágrimas:
“Senhores jurados, o cão permanece com seu dono na prosperidade e na pobreza, na saúde e na doença. Ele dormirá no chão frio, onde os ventos invernais sopram e a neve se lança impetuosamente, se apenas o deixarem estar ao lado de seu dono.
Ele beijará a mão que não tem alimento a oferecer, ele lamberá as feridas e as dores que aparecem nos encontros com a violência do mundo.
Ele guarda o sono de seu dono miserável como se este fosse um príncipe. Quando todos os amigos o abandonarem, ele permanecerá. Quando a riqueza desaparece e a reputação se despedaça, ele é constante em seu amor, como o sol em sua jornada através do firmamento
.
Se a fortuna arrasta o dono para o exílio, sem amigos e sem abrigo, o cão fiel não pede mais do que o privilégio de acompanhá-lo, a fim de protegê-lo contra o perigo, a fim de lutar contra seus inimigos.
E quando a cena final se apresenta e a morte leva o dono em seus braços e seu corpo é deixado no chão frio, não importa que todos os amigos sigam seu caminho; lá, ao lado de sua sepultura, se encontrará o nobre cão, a cabeça entre suas patas, os olhos tristes, mas alertas, fiel e verdadeiro até a morte”.
Esse discurso cunhou a célebre frase "o cão é o melhor amigo do homem".
Tempos depois, meu amigo Pingo adoeceu por leptospirose, doença grave transmitida por ratos. Internamos numa clínica veterinária no centro da cidade.
Felizmente, os vira-latas são mais resistentes do que cachorros de pedrigree por causa da seleção natural dos animais que sobrevivem nas ruas. Os mais fortes conseguem viver por mais tempo e acabam passando essa característica para os seus descendentes e assim esse traço se perpetua. Darwin estava certo...
Dito e feito: Pingo sarou rápido, conseguiu abrir o canil e fugiu rumo à liberdade...
Ora, Pingo escalava o portão de casa, abria os ferrolhos com os dentes, pata e focinho. Para segurar o Pingo era só no cadeado. E olhe lá, porque se deixasse a chave no cadeado “sei não....”. Kkk.
O veterinário se desculpou pelo vacilo, mas como não sabia do passado e da fama libertária de Pingo, relevamos.
Para nossa tristeza, nunca mais encontramos Pingo, que singrou os mares da liberdade como um velho lobo do mar.
Ou talvez tenha ouvido um chamado selvagem, como o cão Buck na obra-prima de Jack London “The Call of the Wild” (título original em inglês de O Chamado Selvagem, adaptado no Brasil por Clarice Lispector), que entra em contato com seu lado primitivo depois do sofrimento e maus tratos durante a corrida do ouro no Alasca.
Sem dúvida foi o livro mais emocionante da minha vida, cuja trama convida o leitor a refletir sobre valores como civilidade, lealdade e liberdade.
Quando ouço a canção “Cachorro Vira-Lata”, cantada por Carmen Miranda e depois regravada por Ney Matogrosso, recordo-me de Pingo e acho que a música de propósito foi feita pra ele:
“Eu gosto muito de cachorro vagabundo, que anda sozinho pelo mundo, sem coleira e sem patrão! Gosto de cachorro de sarjeta, que quando escuta a corneta, sai atrás do batalhão”.
Hoje todo SRD (sem raça definida, eufemismo de vira-lata rss) das ruas me traz lembranças e faz bater uma saudade danada apertando meu coração dentro do peito, porque eu adorava aquele cachorrinho sem pedigree que era o orgulho lá de casa.
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