COLUNA FÓRUM OPTIMUM
CONSIDERAÇÕES SOBRE REFORMA AGRÁRIA E DESAPROPRIAÇÃO
Por Adilson Garcia
Preliminarmente, antes de se adentrar na seara dos fundamentos que alicerçam os institutos objeto do presente artigo, impõe-se a definição de alguns conceitos com o intuito de facilitar a interpretação. A noção desses conceitos é importante para se discutir os fundamentos sociojurídicos e métodos de reforma agrária.
Comete-se o equívoco de nominar reforma agrária o mero assentamento de colonos em terras inexploradas. A definição de reforma agrária é mais abrangente, pois a colonização é um complemento da reforma agrária e consiste somente na ocupação ou incorporação de novas terras, particulares ou estatais, ao processo de produção agrícola.
Destarte, convém dissipar essa interpretação errônea, trazendo à colação a acepção etimológica de reforma agrária, vez que o assentamento é uma parte do todo. Reforma vem das palavras re e “formare”. O prefixo re significa renovação enquanto que “formare” é a maneira de existência de uma coisa. Logo, reforma agrária é a mudança do estado agrário.
No ponto de vista doutrinário “reforma agrária é a revisão, por diversos processos de execução, das relações jurídicas e econômicas dos que detêm e trabalham a propriedade rural, com o objetivo de modificar determinada situação atual do domínio e posse da terra e a distribuição da renda agrícola” (DUARTE apud FERREIRA, 1994).
Já sob a ótica marxista, “reforma agrária é o confisco sem indenização de todas as terras dos latifundiários em benefício dos camponeses” (LENIN apud FERREIRA). Por causa desse método, 600 mil colonos foram mortos na extinta União Soviética quando lá estatizaram sob confisco todas as propriedades rurais. A produtividade soviética caiu vertiginosamente e a fome se abateu sobre a região do cáucaso.
Há algumas décadas a mídia trouxe nova visão da reforma agrária, sob o viés populista do falecido ex-presidente da Venezuela Hugo Chaves: “Essa é a meta: proporcionar a todo o nosso povo a maior soma de felicidade possível. É necessário entregar as terras aos pequenos agricultores, aos que a trabalham, para acabar com o latifúndio na Venezuela” (DWECK, 2007). Essa é mais uma das falácias venezuelanas que, à evidência, não deu certo. Esse pessoal não aprende com a história!
O conceito tem interpretação autêntica porque a definição de reforma agrária está expressa no Estatuto da Terra: “Considera-se reforma agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios da justiça social e ao aumento de produtividade” (art. 1º, § 1º).
DOS MÉTODOS DE REFORMA AGRÁRIA: Há o confisco, que é a tomada das terras sem nenhuma indenização, típico das nações comunistas.
Por outro lado, tem-se o instituto da desapropriação, na qual o Estado paga em dinheiro, em títulos da dívida pública ou em dinheiro e títulos da dívida pública, o que se dá principalmente nos países democráticos.
No Brasil, prevê-se justa e prévia indenização em títulos da dívida agrária (TDA), resgatáveis em até 20 anos, sendo as benfeitorias úteis e necessárias indenizadas em dinheiro (ar. 184, caput e § 1º, CF/88).
Quando se fala em posse, invasão de áreas e o instituto da usucapião, vozes se levantam contra, sustentando como argumento-mor o direito de propriedade. Quero esclarecer que um direito não exclui o outro, porque todos têm previsão constitucional.
É necessário relembrar que antes da descoberta das terras americanas pelos exploradores europeus, aqui viviam grupos indígenas, cuja subsistência provinha da caça e pesca, extrativismo de frutos e raízes e da agricultura, os quais migravam periodicamente após a relativa exaustão da terra. Portanto, nômades e por consequência sem maiores preocupações com a apropriação do solo, mesmo porque não distinguiam, a exemplo dos romanos, o instituto da propriedade.
Com o Tratado de Tordesilhas, deu-se o direito de propriedade das terras brasileiras à coroa portuguesa, decorrente do apossamento histórico. Os lusitanos consideravam essas terras como um grande imóvel integrante do patrimônio real, situação essas que perduraria até a independência, em 1822.
As primeiras explorações do Brasil se deram através do arrendamento a um consórcio de comerciantes portugueses, sob a liderança de Fernão de Noronha, findado em 1505. Segue depois a criação das capitanias hereditárias, cujos donatários não detinham a propriedade, senão meros possuidores, mas podiam dentre outras prerrogativas, doar sesmarias, dando origem à formação de latifúndios. (SCIORILLI, 2007)
Sintetizando, divide-se a história da propriedade rural no Brasil em quatro fases, a saber: sesmaria (1500 a 1822), posses (17.7.1822 a 1850), Lei de Terras (da Lei 601, de 18.9.1850 a 1891) e República (da Constituição Republicana de 1891 até os dias atuais).
Hodiernamente, vivemos em uma era onde prevalecem os direitos difusos ou metaindividuais em detrimento dos direitos individuais. Em decorrência da ideologia do estado social, surgiu a função social da propriedade, suplantando o período individualista ou egoístico inspirado no código napoleônico e adotado pelo Código Civil idealizado por Bevilacqua e promulgado em 1916.
Concorreram para o desenvolvimento da ideia a doutrina clássica do direito natural (Santo Tomás de Aquino) e a dos positivistas (liderados por Augusto Comte), as quais atribuíam à propriedade a eminente função social. Para a igreja, a propriedade é uma garantia da liberdade e dignidade humana.
Para Comte, a propriedade visava formar e administrar capitais para a geração futura. León Duguit arremata que “a propriedade não é mais o direito subjetivo do proprietário; ela é a função social do detentor da riqueza”, substituindo a expressão “direito subjetivo de propriedade” por “propriedade função” (FERREIRA FILHO apud SCIORILLI, 2007).
Não obstante as críticas, a função social foi incorporada em diversos ordenamentos, consagrando-se na Constituição Alemã de 1919 (Weimar) e inspirando o Pergaminho Fundamental Brasileiro de 1934 a inaugurá-la expressamente e insculpida com maior força na CF/88.
Nossa Carta Política de 1988, nominada de “cidadã” por um dos de seus baluartes, Ulisses Guimarães, foi a mais generosa de todas no trato da propriedade, garantindo-a expressamente (art. 5º, XXII) como direito fundamental, submetendo-a, contudo, às restrições decorrentes do interesse social, ao dispor no art. 170 que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II - propriedade privada; III - função social da propriedade.
Respeitante à propriedade rural, foi dedicado um capítulo à parte, prescrevendo que “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social” (art. 184), explicitando regras claras quanto ao cumprimento da mencionada função social quando atendidas simultaneamente as condicionantes: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (art. 186).
Em decorrência desse norte, o Código Civil de 2002, avançando sobre as prefaladas orientações de cunho individualista do Código de 1916, adotou a corrente solidarista (FACHIN apud SCIORILLI, 2007), ao dispor que no art. 118 que:
- 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
- 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
- 3º O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
E nem poderia ser de forma diferente. O min. Fachin do STF (op. cit.) ao comentar as ações reintegratórias estribadas no esbulho possessório, sustenta com inegável acerto ao se referir ao Código Civil anterior que “não é a Constituição que deve ser lida à luz do Código Civil, e sim o Código que deve ser aplicado sob a regra constitucional”.
Fachin (STF) arremata que “diante das novas exigências constitucionais, estamos com aqueles que entendem que fica sem proteção possessória a propriedade imobiliária rural formal que não cumpre com sua função social”.
Contundo, a pequena propriedade rural trabalhada pela família goza de proteção constitucional quanto à penhora de débitos decorrentes de sua atividade produtiva (CF, art. 5º, XXVI) ou contra desapropriação, ao lado da média propriedade, desde que o proprietário não possua outra e seja produtiva (CF, art. 185, I e II).
O escopo maior desse regime especial quanto à propriedade rural é a diminuição da desigualdade social, mormente no campo, fomentada pela política legal latifundiária herdada do Brasil-colônia.
No aspecto social-econômico, a terra, bem típico de produção, deve gerar bens para a sociedade, principalmente alimentos, não podendo o proprietário que não a utiliza ou o faça sem observância dos ditames constitucionais (art. 186) invocar o direito de propriedade na visão individualista.
A lição que se tira é que a garantia de propriedade rural limita-se àquela que cumpre sua função social, o que se ser interpretado em consonância com o direito fundamental à propriedade que veda o confisco puro, impondo a justa e prévia indenização em títulos da dívida agrária, resgatáveis em até 20 anos, sendo as benfeitorias úteis e necessárias indenizadas em dinheiro (CF, art. 184, caput e § 1º).
Não se deve olvidar também a proteção ambiental explícita no conceito, porque a exploração deve proteger os recursos naturais como as florestas, o solo, as águas e a fauna, exigindo a aplicação concomitante do princípio do desenvolvimento sustentável.
Assim, para rebater aqueles que criticam o meu ponto de vista favorável ao condicionamento do direito de propriedade ao cumprimento da função social, alerto que isso tem matizes constitucionais e vem de longa data no Brasil.
“A terra é minha e eu faço dela o que eu quero!” é coisa de ignóbil que não conhece a Constituição de seu país!
Um abraço para o gaiteiro, tchê!
Créditos (Imagem de capa): divulgação
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