A segunda pernada de Bolsonaro
Controlar os nazistas. Era essa a ideia. Mas e se os responsáveis por controlar os nazistas também fossem nazistas? Por trás daqueles casacões pesados e medalhas de condecorações por uma guerra perdida, nem todos os generais o apoiavam. Os militares de bem achavam que se tratava apenas de dar corda curta e firme à Hitler. Sucumbiram.
O jornalista Luiz Maklouf Carvalho nos trouxe em seu livro: O Cadete, publicado em 2020, a memória, o conhecimento, os detalhes, documentos, testemunhos do julgamento do então capitão Jair Bolsonaro. Primeiro, um artigo assinado pelo capitão, na Veja em 1986, defendendo aumento dos soldos militares. No ano seguinte, a descoberta de um plano de explodir quartéis com dinamite, cuja uma das provas materiais eram croquis de próprio punho de Bolsonaro.
Por suas peripécias, amplamente repercutidas pelos jornais e revistas da época o Bolsonaro foi inicialmente condenado a quinze dias de prisão por indisciplina e, quanto ao atentado, à julgamento que poderia lhe valer a expulsão sumária e desonrada da corporação.
A primeira instância lhe condenou unanimemente por três votos à zero. As perícias e provas eram então inquestionáveis. O caso foi então para o Supremo Tribunal Militar. O então Ministro do Exército Leônidas Pires, do governo José Sarney, desejava uma punição exemplar. Mas não foi bem assim.
O tribunal composto por membros remanescentes da recente ditadura militar, recusou a autenticidade da autoria dos croquis, uma prova material incontestável, declinando de um parecer pericial, segundo o jornalista Luiz Maklouf, e por nove votos contra quatro o capitão foi considerado inocente. Leônidas Pires sai chamuscado.
O fato não impediu a saída de Bolsonaro do Exército, embora remunerada, e iniciasse a sua bem sucedida carreira política parlamentar por décadas, inicialmente como vereador, na cidade do Rio de Janeiro, passando pelo baixo clero da Câmara Federal, sentando-se normalmente no fundo do plenário, e, tornando-se finalmente presidente, eleito pelos brasileiros em 2018, sendo ainda o Comandante em Chefe das Forças Armadas.
Tudo é poder. Ao contrário do que defende os causídicos da neutralidade. O amor, as relações familiares, a ação dos homens sobre o meio ambiente, suas organizações civis e religiosas, o direito, a mídia, a atividade científica. Nada é neutro. Porque somos seres essencialmente políticos. Isto já nos ensinava Max Weber, em um dos seus ensaios metodológicos em 1904. E porque política é valor. E se não servir Weber, serve Aristóteles.
Combater um vírus para salvar vidas ou desprezá-lo e causar mortes são decisões, escolhas de conteúdo político, de valores morais, subjetivos, éticos. Portanto, novamente, políticos. E não há como o próprio cientista ou médico escapar disso. Daí advém a complexidade e a objetividade condicionada à valores postos à própria ciência.
Portanto, aquela vitória de Bolsonaro, obtida junto ao Supremo Tribunal Militar em 16 de julho 1988, há 34 anos, foi sobremaneira uma vitória política de um cadete, com seus croquis mal desenhados, e de suas dinamites de fabricação artesanal, sobre a mais alta cúpula dos generais brasileiros.
Não resta então muito para captar a lógica dos atuais acontecimentos, que fizeram com que novas e mais poderosas dinamites caíssem nas mãos do cadete, agora presidente, com o seu poder de mando sobre o desfecho do caso Pazuello.
Nada foi provocação, aleatório. Foi ato deliberado de submissão política mesmo. Uma submissão construída e consolidada nas mais das profundas escuridões, onde reside a elite nacional e o seu disseminado autoritarismo e opressão da sociedade. Seu profundo desprezo e ódio de classe.
Não é difícil entender que a nova pernada, mais grave, que o cadete deu em dezessete generais de elite do Alto Comando do Exército em 2022, repetisse aquele que envolveu treze generais em 1988.
Mas nem todos. Nem todos os nossos generais ociosos e sem guerras. Uns poucos, verdadeiramente patriotas, no sentido de amar seu povo, não aos hinos, marchas, soldos e bandeiras. Outros, até mais liberais, intelectualizados e simpáticos. Alguns, apenas alegres jogadores de peteca nas areias ensolaradas da zona sul carioca nos finais de semana, vivendo a boa vida.
Uns pretendem sinceramente controlar o cadete. E deixar essa dinamitizinha simplesmente não explodir, no fundo para o bem da pátria e da peteca. Mad outros, pretendem, construir as SAS.
Pazzuellos, rebeliões policiais, domínio da baixa patente do Exército, lei de liberação de armas, questionamento das eleições, são simplesmente croquis da nova pernada do cadete.
Não se trata apenas de disciplina, desordem, anarquia descontrolada nos quartéis, como analisam os indescritíveis analistas de borda. Trata-se de algo bem maior que infelizmente, em mais de um século velhacos medalhados, uns inclusive com as mãos sujas de sangue de seus patriotas, não conseguiram entender. Jacarezinho é aqui. E é hoje.
Chega de ditadura militar. De qualquer tipo.
Antonio C. Alkimim. Doutor em Ciência Política. Professor da Puc-Rio.
4 de junho de 2022.
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